sexta-feira, 15 de março de 2013

AS CRUZADAS

 
Cruzada. No mundo pós-11 de setembro, a simples menção dessa palavra causa polêmica. Após o ataque às torres gêmeas, o presidente George W. Bush teve de pedir desculpas por usar o termo “cruzada” para nomear sua guerra contra o terrorismo. Osama bin Laden aproveitou a gafe. Em seu pronunciamento, o terrorista classificou a guerra no Afeganistão de “cruzada religiosa contra os muçulmanos”. A palavra ressuscitava dos livros de história. Só faltava Hollywood se interessar pelo assunto. Não deu outra.
O enredo do filme Cruzadas, de Ridley Scott, que está chegando aos cinemas, gira em torno de um ferreiro que se torna cruzado. Em tempos de Guerra no Iraque, nada mais natural que um filme com tema tão espinhoso despertasse protestos antes mesmo do lançamento. Em agosto de 2004, o jornal The New York Times entregou o roteiro de Cruzadas para teólogos cristãos e islâmicos. Os cristãos não viram problema, mas os muçulmanos acusaram o filme de estar cheio de erros.
Afinal, o que foram as cruzadas? Um ato de fé e heroísmo? Um massacre covarde? “Não faz sentido buscar hoje bandidos e mocinhos”, diz o holandês Peter Demant, historiador da USP. “As batalhas tiveram significados diferentes para o Ocidente e o Oriente”. Existem, portanto, duas histórias das Cruzadas. Nada melhor do que narrar essa história dos dois pontos de vista. Como você poderá constatar nos dois textos que correm nas páginas seguintes, as versões não se contradizem. São olhares diferentes que ajudam a entender por que, nove séculos depois, o assunto continua fascinando – e causando polêmica – nos dois lados do mundo.

O exército de Cristo

No dia 27 de novembro de 1095, o papa Urbano II fez um comício ao ar livre nas cercanias da cidade de Clermont, na França. Na audiência, além de muitos bispos, havia nobres e cavaleiros. Depois desse sermão, o mundo nunca mais seria o mesmo.
No discurso, o papa tentou convencer os espectadores a embarcar numa missão que parecia impossível: cruzar 3 mil quilômetros até a cidade santa de Jerusalém e expulsar os muçulmanos, que dominavam o lugar desde 638. Segundo os historiadores, Urbano II deve ter usado uma linguagem vibrante e provavelmente falou dos horrores que os peregrinos cristãos à Terra Santa estavam vivendo. Do alto de sua autoridade divina de substituto de São Pedro na Igreja, o papa prometeu: quem lutasse contra os infiéis ganharia perdão de todos os pecados e lugar garantido no paraíso. Um prêmio tentador no imaginário do homem cristão medieval, sempre atormentado pela ameaça de queimar no inferno.
A reação da multidão foi imediata. Gritos de “Essa é a vontade de Deus” começaram a ecoar. A pregação mal havia terminado e o bispo Ademar de Monteil, num gesto provavelmente ensaiado, ajoelhou-se diante do papa e “tomou a cruz”, ritual de alistamento em que o voluntário recebia uma cruz de pano que deveria ser costurada na altura do ombro do uniforme de batalha. Ademar embarcaria na primeira cruzada. Dali em diante, aquela cruz passaria a identificar os “soldados de Cristo”, ou, simplesmente, “cruzados”.
Segundo os historiadores, a intenção do papa era convocar apenas cavaleiros bem preparados. Mas seu discurso empolgou especialmente os camponeses pobres que tinham pouco a perder. As cruzadas terminariam entrando para a história como o maior movimento populacional da Idade Média, redefinindo para sempre o mapa do mundo.
A ameaça do Islã
No século 11, não havia dúvidas: o Islã era a religião mais forte do planeta. Em menos de cinco séculos, desde a morte de Maomé, em 632, a palavra de Alá tinha conquistado a Península Arábica, o norte da África, a Ásia Central, Espanha, Portugal, grande parte da Índia e até um pedacinho da China.
Não era uma hegemonia apenas religiosa. Os muçulmanos superavam os cristãos em ramos como a matemática, a astronomia, a medicina e a química. Não havia cidade européia que se comparasse aos centros islâmicos. O Cairo sozinho abrigava tanta gente quanto Paris, Veneza e Florença juntas, as três maiores cidades cristãs da época.
Foi quando chegou ao papa um pedido de ajuda do Império Cristão Bizantino. A sede do império, Constantinopla (atual Istambul, capital da Turquia), era o maior centro do cristianismo naquela parte do mundo. Os bizantinos estavam preocupados com a presença nas suas fronteiras dos muçulmanos, naquela época governados por uma agressiva monarquia de etnia turca, os seljúcidas. Originados de uma tribo de saqueadores nômades das estepes da Ásia Central, os seljúcidas haviam conquistado os territórios do califado de Bagdá no século 10 e, após se converterem ao islamismo, tornaram-se a maior força muçulmana. E eles queriam mais. Já tinham tomado a cidade bizantina de Nicéia e estavam a menos de 160 quilômetros de Constantinopla, o equivalente a três dias a cavalo.
Naquele momento, não restava alternativa ao imperador bizantino Aleixo Comenos a não ser apelar para seus confrades europeus. Só que, quando o imperador avistou a primeira leva de combatentes cristãos, teve motivos de sobra para se preocupar.
Cruzada Popular
Se é verdade que a intenção do papa era enviar um exército forte e organizado, formado pela elite dos cavaleiros, ele se frustrou um pouquinho. Uma série de pregadores populares começaram a incitar o povão a atacar os “infiéis”. A promessa de remissão dos pecados, aliada à chance de pilhar tesouros lendários, era bem atraente. Velhos, mulheres e crianças resolveram se lançar na aventura.
O primeiro desses exércitos foi liderado por um pregador conhecido como Pedro, o Eremita. Já no caminho, seus seguidores criaram tumultos, massacrando comunidades judaicas em cidades como Trier e Colônia, na atual Alemanha. “As cruzadas fugiram do controle”, diz a professora Leila Rodrigues da Silva, professora de História Medieval da UFRJ. “É provável que muitas dessas pessoas nem soubessem diferenciar um judeu de um muçulmano.”
Ainda assim, o imperador bizantino recebeu os seguidores do Eremita em Constantinopla. Prudentemente, Aleixo aconselhou o grupo a aguardar a chegada de tropas mais bem equipadas. Mas a turba começou a saquear a cidade e foi obrigada a se alojar fora de Constantinopla, perto da fronteira muçulmana. Até que, em agosto de 1096, o bando inquieto cansou-se de esperar e partiu para a ofensiva. Foi massacrado.
Somente dois meses após essa “cruzada popular” começaram a chegar a Constantinopla os primeiros exércitos liderados por nobres. Esses homens estavam interessados em mais do que um lugarzinho no céu. “Nessa época, a Europa vivia um boom populacional e a pressão pela posse de terras era muito grande”, diz a historiadora da Idade Média Fátima Fernandes, da UFPR. “Os filhos de nobres que não eram primogênitos só podiam enriquecer por meio de um bom casamento, algo cada vez mais difícil. As cruzadas abriram uma esperança para eles”, diz ela.
Até que foi fácil
O primeiro líder nobre a chegar a Constantinopla, em dezembro de 1096, foi o conde Hugo de Vermandois, primo do rei da França, que veio pelo mar com seus cavaleiros e soldados. Logo depois, vindo pela mesma rota, aportou o duque da Baixa-Lorena, Godofredo de Bouillon, acompanhado de irmãos e primos. Para financiar sua participação na cruzada, Godofredo vendera seu castelo – o que prova que não pretendia voltar para casa.
Em abril de 1097, cerca de 40 mil homens atravessaram o estreito de Bósforo (que separa a Europa da Ásia) sem encontrar resistência. O governante muçulmano, o sultão turco Kilij Arslan, iludido pela facilidade com que havia derrotado os pobres cruzados do Eremita, estava mais preocupado com disputas internas com vizinhos muçulmanos do que com a chegada de um novo contingente de cristãos. Como o sultão iria perceber apenas tarde demais, esse seria o maior erro de sua vida.
Dessa vez, bem equipados com escudos, armaduras e cavalaria, os cruzados cercaram e tomaram Nicéia, devolvendo-a aos bizantinos. Em outubro de 1097, eles chegaram a Antióquia, conquistando aquela que havia sido uma das principais cidades do Império Romano. Seis meses depois, os cristãos partiram em direção a Jerusalém. A essa altura, restavam 13 mil homens, um terço do contingente inicial. Após um mês de cerco, em 13 de julho de 1099, os cruzados conseguiram finalmente entrar na cidade santa. No dia 15 venceram as últimas resistências.
Para a maioria deles, a conquista fora um milagre. Menos de quatro anos após a pregação em Clermont, os cristãos vitoriosos saíam em procissão para o Santuário do Santo Sepulcro, onde Cristo teria ressuscitado. O papa Urbano II morreu duas semanas depois, sem ter recebido a boa notícia da vitória. Mas ele também foi poupado das más notícias que chegariam depois.
Derrota após derrota
Foram criados quatro Estados cristãos nos territórios conquistados. Ao sul, o mais importante, o Reino de Jerusalém, governado por Godofredo de Bouillon. Um pouco acima estavam o Estado de Trípoli, o Principado de Antióquia e o Condado de Edessa. Os chefes desses Estados logo perceberam que a permanência lá não seria fácil.
Os governantes cristãos logo perderam o apoio dos bizantinos, porque se recusavam a reconhecer a soberania do Império na região e não haviam demonstrado nenhum escrúpulo em substituir os patriarcas da Igreja Ortodoxa Bizantina por bispos oriundos da Igreja Católica Romana. Para piorar, não havia soldados suficientes para a formação de grandes exércitos. Logo após a conquista de Jerusalém, milhares de cavaleiros regressaram à Europa.
Em 1144, a perda de Edessa para os muçulmanos foi a primeira prova da vulnerabilidade cristã. Com o objetivo de recuperar o território perdido, o papa Eugênio III lançou uma segunda cruzada em 1145, liderada por Luís VII, rei da França. Foi um fracasso. O filme que está chegando aos cinemas retrata as cruzadas a partir desse período.
Mas o pior estava por vir. Em 1187, sob a liderança de Saladino – o sultão que unificou os muçulmanos e até hoje é venerado por seguidores do Islã no mundo inteiro –, os muçulmanos reconquistaram o Reino de Jerusalém. Era o começo do fim.
A perda de Jerusalém foi um choque para a Europa cristã, apesar de Saladino ter permitido peregrinações ao Santo Sepulcro. Dali em diante, houve pelo menos mais quatro grandes cruzadas em direção à Terra Santa e os cristãos colecionaram derrotas e vexames. Um dos piores foi o de 1204, quando uma cruzada acabou atacando e saqueando a cidade cristã de Constantinopla, deixando cicatrizes profundas na relação entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Em 1212, organizou-se uma cruzada formada por adolescentes, a “Cruzada das Crianças”. Seus participantes, na maioria, terminaram mortos ou vendidos como escravos.
A herança cruzada
Mas, afinal, qual foi a herança das cruzadas para o Ocidente?
Segundo os historiadores, elas deixaram diversas marcas negativas, como a separação da Igreja do Ocidente e do Oriente e um rastro de violência que fez aumentar a desconfiança entre cristãos e muçulmanos nos anos seguintes.
Em compensação, é inegável que a Europa, apesar de não ter conquistado seus objetivos, saiu fortalecida. As cruzadas reforçaram a autoridade dos reis, abrindo caminho para a criação dos Estados Nacionais. Elas também impulsionaram o comércio com o Oriente, enriquecendo as cidades italianas que iriam ter papel fundamental na sofisticação das transações financeiras até resultar na criação do sistema bancário. Além disso, reforçaram a identidade cristã no Ocidente. E paradoxalmente, apresentaram os costumes orientais aos ocidentais, dos tapetes às especiarias. Essas novidades gerariam curiosidade na Europa, o que impulsionaria a busca por outras terras. Como o Brasil.

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