terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ex-sem terra lê Nietzsche e administra pesque-pague

Em outubro de 1985, com apenas cinco anos de idade, Élbio Jorge Castro participou da invasão de uma fazenda junto a integrantes do MST

52 Histórias Que Não Acabaram: ex-sem terra lê Nietzsche e administra pesque-pague Genaro Joner/Agência RBS
Depois de cursar filosofia, Élbio Castro comanda um pesque-pagueFoto: Genaro Joner / Agência RBS
Élbio Jorge Castro oferece a cuia de chimarrão ao freguês do pesque-pague, que lamenta o azar de não ter capturado ao menos uma traíra, conhecida pela voracidade com que ataca a isca. É fim de tarde, o cliente prepara-se para ir embora, pede à filha, de sete anos, que recolha a linha do anzol. 

— Não peguei nada. Cadê o peixe? — pergunta ele, brincando com Élbio.

Subitamente, a menina começa a gritar e a pedir ajuda. Um toco cinza-prateado vem rasgando as águas do açude, puxado pela linha de náilon que parece não suportar o peso. É uma carpa húngara, de incríveis seis quilos, confirmados depois na balança. Então, é a vez de Élbio gracejar com o pescador antes desanimado: 

— Ó, mas como é que não tinha peixe! 

A carpa é levada como troféu, talvez seja congelada para comprovar a façanha a amigos e parentes, renderá almoços e jantares só mais adiante. Élbio está feliz com a alegria do frequentador. Sobretudo, está satisfeito com a prosperidade do negócio montado pela família: o Pesque-pague Renascer, situado no bairro rural de Itapuí, em Nova Santa Rita. 

Estudou Filosofia para se descobrir 

Nem sempre foi assim. Nascido em Tenente Portela, no norte gaúcho, Élbio é filho de agricultores que não tinham terra. Em 1985, aos cinco anos, entrou na carroceria de um caminhão, numa noite chuvosa, para participar da invasão da Fazenda Annoni, em Sarandi, com os pais e outros 6,5 mil colonos. Até os oito anos, morou nas barracas de plástico preto dos acampamentos sem-terra. No verão, eram fornalhas. No inverno, iglus que gotejavam de tanta umidade. 

A insalubridade e o medo foram companheiros de infância. Élbio sentia pavor quando via os coturnos, os escudos e as armas dos policiais militares convocados para cumprir as ordens judiciais de despejo. Hoje, compara que viveu duas vidas não apenas diferentes, mas opostas entre si: 

— No acampamento, é a incerteza. No assentamento, é a segurança. 

É na legalidade do assentamento de Nova Santa Rita, com os pais e os irmãos, que Élbio se realizou. Depois de suar com a enxada nas plantações, cursava Filosofia na Unisinos. Mergulhou na obra de Engels e Marx para entender a história dos trabalhadores. Interessou-se também por Nietzsche, para desmontar preconceitos e receios ancestrais. Maravilhou-se com aforismos, de séculos passados, que continuam atuais. 

— Sempre gostei de buscar respostas para as coisas, estudar os pensadores – diz. 

Mas ele não pôde completar a faculdade, faltou dinheiro. Há quatro anos, começou a abrir o pesque-pague com o pai, Marli Castro, 54 anos, um dos líderes da fase inicial do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Atualmente, são três açudes para a pesca de tilápias, traíras e carpas. Num deles, espremem-se mais de 4,5 mil peixes. 

O local é um sítio de lazer, que oferece piscina, lago com pedalinhos, recantos para descansar, churrasqueiras, trilhas ecológicas, campinho de futebol, salão de festas e bar. Os visitantes vêm de Canoas, Sapucaia do Sul, Esteio, Portão, Triunfo, Porto Alegre. Adultos pagam R$ 6 pelo ingresso, crianças entram livremente – e são as que mais aproveitam. Quando fisgam um peixe, fazem um alarido. É aquela correria de pai, mãe, tio, avó, até o cachorro vai junto, todos apressados em elogiar a proeza. E a tirar fotos, que é indispensável provar o feito.

Élbio desdobra-se no pesque-pague, para garantir que ninguém vá embora com a frustração de ter apenas ensinado a minhoca a nadar. Também limpa a piscina, corta a grama, pinta mesas e cadeiras, poda árvores, enfeita o lugar. E não descuida da sua vocação de menino vindo da roça. Cultiva arroz ecológico – sem veneno agrícola – numa área de 13 hectares. 

A propósito, Élbio não enjoou de tanto peixe. Adora postas de traíra frita, temperadas com limão, empanadas em de farinha de trigo. E dá a receita para que fique tostadinha e saborosa: 

— O azeite na frigideira deve estar bem quente.


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