quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O tempo livre industrializado




RENATO NUNES BITTENCOURT É DOUTOR EM FILOSOFIA PELO PPGF-UFRJ, PROFESSOR DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA FACULDADE CCAA, DA FACULDADE DE FLAMA E DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DO COLÉGIO PEDRO II. TAMBÉM É MEMBRO DO GRUPO DE PESQUISA SPINOZA E NIETZSCHE
A cultura ocidental tradicionalmente estigmatizou o trabalho como uma atividade degradante para o ser humano, considerando-a indigna de homens livres. Nessa conjuntura, o trabalho era imputado como uma tortura; aliás, a análise etimológica da palavra trabalho indica que esta se origina do termo latino tripalium, um instrumento de suplício. Todavia, essa perspectiva negativa em relação ao trabalho só encontra signi cação na estrutura laboral regida pela relação de dominação entre senhor e submisso, sendo incompatível com a experiência de trabalho na qual o ser humano adquire a capacidade de se realizar existencialmente. Por conseguinte, o materialismo dialético de Marx (1818-1883) explica com precisão esse processo: “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu próprio câmbio material como uma de suas funções. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos – a m de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modi ficando-a, ao mesmo tempo modi ca sua própria natureza”¹.
Entretanto, as relações sociais de trabalho se caracterizaram historicamente pela desapropriação dos meios de produção das mãos daquele que representava efetivamente o processo construtivo de criação, o trabalhador, que se encontrou na necessidade de vender sua força de trabalho ao detentor dos meios de produção que, arbitrariamente, estabeleceu uma relação injusta na distribuição das riquezas para com seu subordinado, justi ficando os contundentes versos da Internacional Socialista: “Abomináveis na grandeza/ Os reis da mina e da fornalha/ Edi caram a riqueza/ Sobre o suor de quem trabalha/ Todo o produto de quem sua/ A corja rica o recolheu/ Querendo que ela o restitua/ O povo só quer o que é seu”.

IMAGEM: SHUTTERSTOCKHOJE, O EMPREGO EXIGE A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE VIDA PARA O TRABALHO E O TEMPO DOMICILIAR, CRIANDO-SE ASSIM INDIVÍDUOS DEDICADOS EXAUSTIVAMENTE À EMPRESA

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Para Marx (1818-1883), a valorização do mundo das coisas torna proporcionalmente inversa a valorização do homem, que torna-se mais pobre quanto mais riquezas produz
No advento da modernidade, não obs tante o seu propalado progresso científico, ao invés de ocorrer efetivamente a superação dessas contradições sociais, elas se ampliaram. O desenvolvimento da tecnologia capitalista conduziu ao paulatino decréscimo da capacidade do trabalhador se realizar como ser humano em suas atividades laborais, reconhecendo-se naquilo que ele faz em sua jornada. A divisão técnica da produção e a sua crescente mecanização geram na subjetividade do trabalhador uma contínua repulsa pelo seu objeto pro ssional, tornando sua atividade maçante, incapaz de lhe proporcionar genuína satisfação existencial. O trabalho regido pela ordem capitalista em sua frieza tecnocrática se torna apenas um recurso para que o sujeito possa obter o ganho mínimo para a manutenção de sua existência, em verdade, uma subvida. O filósofo Paul Lafargue (1842-1911) considera que “à medida que a máquina se aperfeiçoa e dispersa o trabalho do homem com uma rapidez e uma perfeição que não param de crescer, o operário, em vez de prolongar o seu repouso proporcionalmente, redobra seu esforço, como se quisesse rivalizar com a máquina. Ó concorrência absurda e mortal!”².
VIDA PARA O TRABALHOO preço a ser pago pela manutenção de um razoável padrão de vida na sociedade plutocrática é certamente doloroso: o empreendedorismo capitalista exige a progressiva diluição das fronteiras entre a vida dedicada ao trabalho e o tempo domiciliar, criando-se assim os indivíduos conhecidos em nossa estrutura administrativa como workaholics, dedicados exaustivamente pela causa de sua empresa, que se torna a sanguessuga da vitalidade humana, descartando o indivíduo tão logo ele é imputado como desnecessário pelos mandatários financeiros. Para o filósofo alemão Robert Kurz (1943-2012), “a submissão do conteúdo sensível do trabalho e das necessidades à autorreflexão cega do dinheiro é de caráter monstruoso. Essa monstruosidade manifesta-se, durante a evolução da modernidade, em escala historicamente crescente, nas crises em que enormes quantidades de recursos humanos e materiais caram paralisadas por não poderem mais cumprir, por motivos incompreensíveis, aquela nalidade absoluta de transformar trabalho vivo em dinheiro”³.

Ócio criativo: estudo, trabalho e tempo livre
“Na Atenas de Péricles havia quase mais feriado que dias úteis”, afirma o sociólogo italiano Domenico de Masi em sua obra ¹. Nela, de Masi explica detalhadamente todas as celebrações, cultos e concursos líricos e musicais daquela civilização grega antiga. Mas completa: “Tratava-se de uma reflexão alegre e coral, de cujo húmus se originou uma das maiores civilizações dos últimos tempos. Tratava-se do ócio elevado à condição de arte”. No seu estudo sobre o Ócio Criativo, de Masi diz que a sociedade pós-industrial precisa buscar três elementos para alcançar tal condição: comércio, estudo e raciocínio lógico. Assim, segundo ele, para a atividade criativa, estudo, trabalho e tempo livre precisam se confundir. “...o homem, tendo transferido às máquinas o trabalho cansativo, enfadonho, nocivo e banal, poderá se dar ao luxo de atividades criativas em que estudo, trabalho e tempo livre finalmente conviverão”.
O que ocorre hoje, no entanto, é que os trabalhadores, em raros momentos de descanso, o desfrutam carregado de culpa, quando, até por essa culpa, não levam trabalho para a casa nos finais de semana e períodos que não estão na empresa ou no escritório. As férias e períodos de feriado para os trabalhadores da sociedade pós-moderna, segundo de Masi, representam uma “improdutividade ocupacional” ao qual os trabalhadores são forçados.
¹De Masi, Domenico. O futuro do trabalho. José Olympio Editora

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Considerado antigamente como uma atividade de suplício e degradante, o trabalho poderia ser uma atividade para o homem se realizar existencialmente. Mas não é o que acontece na lógica capitalista moderna
O metabolismo e a vida interior do sujeito são anulados pelo sucesso econômico da empresa, que prospera de maneira inversamente proporcional na medida em que declina a existência do trabalhador, reduzido a uma condição de mera coisa, completamente desumanizado, gerando assim a rei ficação da consciência. Conforme argumenta Marx, “o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. Esse fato nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor”4.
Nesse ponto da argumentação, podemos fazer uma ousada relação entre os mecanismos capitalistas de dominação das forças produtivas do trabalhador e os paradigmas da sociedade disciplinar conforme as análises de Michel Foucault (1926-1984): a vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem do poder disciplinar. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminuem essas mesmas forças em termos políticos de obediência5. Nessas condições, a sociedade disciplinar encontra seu análogo capitalista na fragmentação do trabalho, ao proporcionar a educação dos corpos dos operários submetidos ao regime maquinal da divisão cientí ca da linha de produção que impõe a especialização máxima do mínimo.
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Os trabalhadores são obrigados a vender a sua força de trabalho e ficam à mercê da exploração dos detentores dos meios de produção, em uma distribuição de riquezas injusta
Para que ocorra essa organização laboral que desagrega a vitalidade criadora do trabalhador, fazem-se necessários o disciplinamento da sua força produtiva e a coerção moral, econômica e mesmo física. Tais aparatos normativos se sustentam porque nenhum trabalhador livre aceitaria o fato de laborar além do necessário para a manutenção saudável de sua vida; nenhum trabalhador livre aceitaria condições penosas e aviltantes no processo produtivo como é constatado na civilização capitalista, destituído de sentido existencial em uma realidade humanamente diluída, alienada de suas próprias forças vitais. O filósofo austro-francês André Gorz (1923- 2007) afirma ironicamente: “Acolherei as inovações técnicas que aumentam o rendimento de meu trabalho mesmo se elas o tecnizam, submetem-no a rígidos imperativos, fazem-no assemelhar-se a um trabalho rude. Aliás, não tenho escolha: se não acompanhar a evolução das técnicas (ou adaptar-me a elas), logo mais não poderei viver da venda de meus produtos: não serei mais competitivo”6. Percebe-se, assim, que o primeiro momento desse processo é sempre a subjugação, na sequência transformada em subordinação, até chegar a uma situação de consentimento, isto é, de naturalização da divisão social do trabalho na estruturação social hierarquizada e, por fim, do entendimento alienado de que a sociedade assim organizada é a única sociedade possível de acontecer. Herbert Marcuse (1898-1979) considera que “hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da Cultura. Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não liberdade do homem e demonstra a impossibilidade ‘técnica’ de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida”7.

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